Flavio Cruz

As muitas luas da Terra

“A situação é crítica e todos deveríamos nos unir.
 Não podemos permitir que uma parte da humanidade seja extinta. Os isolados têm que viver.
São a nossa essência mais pura, nosso impulso mais vivo.
 Um mundo sem eles não valeria a pena, e no futuro não haveria perdão
 por uma tragédia tão grande contra nós mesmos e o planeta”
(Sydney Possuelo em “Carta Aberta em Defesa dos Povos Indígenas Isolados”)
 
O céu dos últimos dez anos tinha mudado tanto que Apoema não sabia o que pensar. Além da Lua que ele conhecia, havia mais três. Luas, estranhas luas. Nem redondas eram. Brilhavam mais do que a Lua-mãe e se mexiam no céu, menos uma. A mais estranha de todas, por ele apelidada de Amiá, tinha “filhotes” que saíam de seu ventre e eles eram azuis. Havia outras coisas no escuro da noite, que já não era tão escura assim. Luzes velozes, mais que qualquer ave da floresta. As filhas da Lua, às vezes, chegavam bem perto. Apoema sabia que elas estavam a espiar sua gente, seus afazeres.
Os deuses do dia eram outros deuses. Às vezes sussurravam sons de um demônio, às vezes emitiam o assobio das divindades. Eram sempre de dar calafrio. Havia também brilhos intensos a competir com o sol. Mais do que ele, eles luziam, às vezes, em cor prata, às vezes, em cor de ouro sutil. Ainda bem, não havia mais crianças na tribo, pois o medo, medo medonho, iria se instalar em seus corações. Suspeitava algo, porém, Apoema. E isso doía mais do que uma flecha em seu coração. As criancinhas de sua raça, as últimas, que se foram há um bom tempo atrás, suspeitava ele, estavam dormindo, presas, naquelas luas do céu. Se pudesse iria lá ter com elas, resgatar com suas armas, suas alminhas guerreiras. Apoema sabia, porém, que, agora, todas as armas eram vãs.
Uma coisa que Apoema não sabia, embora ele soubesse de tantas outras coisas más, era que, lá fora da floresta, todos sabiam onde ele estava. E ele, que pensava estar sob a proteção das grandes copas das árvores. Há muito tempo atrás, um guerreiro branco, camuflado, entrou na densa mata. Suas vestes eram iguais às folhas, às flores, a tudo que estava em volta. E sua roupa mudava de cor. Ruído não havia, nem cheiro qualquer. Esse soldado da Lua, era mais do que um espírito. Tudo podia. E com esse poder, lançou um dardo invisível no corpo de Apoema. Depois disso, o índio Katawixi não sabia, eles podiam saber tudo que eles queriam. Sabiam como seu coração batia. Sabiam quando seu corpo se molhava nas águas do Rio Muquim, que desaguava no Purus. E, por mais inimaginável que fosse, sabiam de seus pensamentos. Sabiam quando sentia raiva dos deuses, sabiam quando a tristeza enorme e a saudade de seus antepassados invadiam sua alma. Sabiam, quando, inquieto, Apoema se perguntava o que havia acontecido com os deuses de antigamente.
Era a primavera de 2099 e no ano seguinte acabaria o grande tratado dos organismos mundiais sobre a preservação das tribos indígenas isoladas e um organismo internacional poderia, então, adentrar os territórios, coletar “espécimes”, levá-los para laboratórios. Não que eles não soubessem de quase tudo. Com os implantes feitos pelos “soldados da Lua”, DNA, o estado de saúde, qualquer informação já estava com os homens brancos, os criadores das estranhas luas. Mas eles queriam mais, queriam desvendar outros segredos que só os últimos homens da tribo Katawixi sabiam e tinham escondido em seu corpo.
A alma de Apoema, porém, eles nunca iriam decifrar. Nem os monstros da Terra, nem os sábios da Lua, nem seus soldados, nem suas máquinas divinas.
Apoema, que já suspeitava que algo iria acontecer num futuro próximo, trancou em seu peito, segredos que máquina nenhuma iria adivinhar. Só depois da morte, para seus deuses, só para os seus, ele iria confidenciar.

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Published on e-Stories.org on 04/14/2015.

 
 

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