Flavio Cruz

A represa

Arlindo tinha a sua pequena horta, uma criação de galinhas, e um pequeno barraco para dormir. Morava sozinho, de que mais precisava? Estava muito bem assim. Não tinha vizinhos, e a sua “propriedade” ficava no começo de uma pequena elevação. Não tinha documentos daquilo tudo não, mas quem tinha, naquele fim de mundo? A parte mais difícil era a água. Tinha de andar quase dois quilômetros para conseguir aquela preciosidade de líquido, num pequeno riacho que, graças a Deus, estava sempre à disposição. Para as plantas, usava uma água meio barrenta que havia por ali mesmo.
Ele se considerava abençoado. Sem amolação, sem gente para incomodar, estava bom demais. Por isso, quando aqueles homens bem vestidos, apareceram do nada com aquela conversa fiada, ele não gostou muito. Diziam ser do governo. Traziam uma papelada na mão, que, para o Arlindo, não valia nada. Ele nem sabia ler! Explicaram que ele tinha de sair dali, mas não era para ficar preocupado. Já tinham um novo lugar para ele, muito bom. Melhor até. Uma construção de verdade, com muros e tudo mais.  Aquilo tudo ia ser inundado, estava vindo uma represa. O povo precisava de energia, uma grande hidrelétrica ia ser construída. Uma verdadeira benção. Queriam que o Arlindo assinasse aquilo tudo, mas ele nem sabia pegar numa caneta. Os homens desistiram, mas avisaram para ele que em um mês, aquilo tudo ia virar uma água só, ia ficar tudo submerso. Dava para ficar ali, não, precisava ir para um lugar seguro que estava reservado para ele. O governo tinha cuidado de tudo. Os homens, no fim, foram embora, sem ter certeza se o Arlindo tinha entendido ou não a gravidade da situação. Teriam de voltar mais uma vez e tentar levar a mudança do homem para o novo lugar. Não era quase nada o que ele tinha, mas era uma questão de respeito.
O Arlindo ficou cismado com aquilo tudo e não quis saber de conversa, sabia que aquilo era coisa para boi dormir. Estavam querendo era tirar a sua propriedade só porque ele não tinha os papeis. Mas não ia sair dali, nem morto.
Passou um tempo e vieram outros conversar com ele. A conversa já não foi tão doce. Disseram que se não saísse, a responsabilidade era dele. O caminhão estava ali para fazer a mudança, era só ele pegar as coisas e subir junto com os outros. O Arlindo não arredou pé, teimoso que era e decidido que estava a lutar por sua terra. O homem explicou, a água ia chegar e ia começar a subir, subir, até tudo afundar ou ficar boiando, Não tinha para onde ele fugir. Não havia nada que convencesse o homem. Foram embora.
Passaram-se algumas semanas e nada aconteceu. O Arlindo sabia que aqueles homens com cara importante, estavam querendo enganá-lo. Ali tinha alguma coisa errada. Imagina, a água ir subindo, subindo, naquele fim de mundo. Ali nunca tinha tido água suficiente nem para beber! Imagina só.
Um dia porém, pouco antes do meio dia, o Arlindo ouviu um barulho diferente. Uma espécie de trovão ensurdecido, um rosnar de animal ferido, depois um barulho igual a de um rio, que foi crescendo, crescendo... Foi então que ele viu, ao longe, aquele mundão de água se espalhando pela planície, correndo entre as árvores, derrubando tudo que encontrava pela frente. Ainda assim, Arlindo não se apavorou, sabia que ela não ia levar nada que era seu. Sentou-se um pouco mais acima de seu barraco, no topo do pequeno monte e ficou apreciando o acontecimento. Era um verdadeiro mar. A água estava bem perto agora e já não tinha mais a rapidez de antes. Ela foi subindo, subindo. Uma parte da horta do Arlindo já tinha ido embora. E daí ela continuou a subir, mas bem devagar. Ainda assim, o homem não se assustou, sabia que ela ia parar. E ela parou. Ficou a pouco menos de um metro da porta do barraco. O Arlindo, então, foi entrando na água até ficar com os joelhos molhados. Estava feliz com aquela fartura. E tinha mais. Tinha vindo tanta coisa boa boiando, que ele mal conseguia pegar tudo que podia usar. Eram tábuas de qualidade, ripas, troncos e outras utilidades. Foi levando tudo para o seco. Parece até que ele viu uns peixes. Já pensou, poder pescar?
Agora ele entendia por que aqueles homens do governo queriam que ele saísse. Já pensou o valor de uma propriedade daquelas? Com um riozão cheio de coisas boas e até peixe, bem ali na porta? Eles sabiam de tudo, os safados. Queriam era pegar sua propriedade. Ele sabia que tinha lei contra aquilo. Quando você fica muito tempo num lugar, aquilo é seu. Os safados estavam querendo que ele deixasse tudo para eles. Esse pessoal do governo não tem jeito mesmo, só quer roubar...

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Published on e-Stories.org on 08/28/2015.

 
 

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