Mauro Dellal

A profecia

Era fim de uma sexta-feira do ano de 2666. Ele estava pronto para descansar – sempre descansava aos sábados – desde o início da criação era assim. O sábado era sagrado! Sábado? Sim, sim. Todo sábado era santo para Ele. Aliás, nada mais santo do que Ele! Desligou os raios, acomodou algumas nuvens bem macias e colocou o sol para lhe nascer somente no domingo, dia de trabalho. Pensou novamente naquela coisa de segunda-feira. Se era segunda, o primeiro dia era o domingo. Portanto, dia de trabalho. Riu-se; afinal jurara por Ele mesmo não mais querer entender as maluquices dos seus filhos. Faziam tanta bobagem... Mas Pai é Pai. Ora se é! Incomodava-se com essa coisa de mãe prá lá, mãe prá cá. Ele era Pai e dos bons. De vez em quando se enfurecia e mandava um terremoto; ou naquela vez em que fez chover. Riu de novo e ficou com vergonha de Si. Era prá ser uma chuva boa, sim, daquelas que lavam e purificam. Mas quarenta dias? Deu uma gargalhada, daquelas que nos fazem bem à alma, e lembrou-se de que o ministro da Natureza, já meio surdo, entendera tudo errado:

- Manda água, Pedro!

- Quantas horas, chefe?

- Quá! Tenta dois dias!

- Certo, Boss!

Pedro gostava de certa intimidade. Mas achou demais. Mesmo para ele, que ficava incomodado com a aquela babação de ovo pelos mortais. Achou demais quarenta e dois dias.

- Quarenta e olhe lá, definiu, para não parecer estar indo de encontro às ordens! - E não vai salvar ninguém, perguntou?

-E não é? Animal! Eram íntimos mesmo! - Manda um anjo avisar lá embaixo.

E desceu água... E foi assim que Noé conseguiu escapar com aquela animalhada toda.

Ou naquela vez em que o santo estava incomodado com aquela festinha que não acabava nunca em Sodoma e Gomorra. Vivia pedindo a Ele para dar um jeito.

- Deixa as crianças se divertirem, Pedro! Dizia.

- Mas é preciso fazer algo, bradava Pedro. – Alguma coisa!

- Arre!

- Boa, Captain! Pedro às vezes exagerava. – Por que não pensei nisso antes, dizendo isso esfregando as mãos.

E foi assim que acabou a farra: as duas cidades foram varridas do mapa.

Desde esse dia, Ele prometeu que não mais utilizaria essas interjeições antigas. Além de transferir Pedro para uma função mais segura: porteiro.

No fundo, os males vieram para bem: Ele ganhou fama de mal-humorado; ganhou mais respeito e todos O temiam. Pai precisa ser respeitado, pensou com certo orgulho.

Mas no fundo, no fundo era um bom Pai: criou o universo, as galáxias, os planetas, até um paraíso. Tudo muito bonito, certinho, azeitado... Porém aquelas duas crianças estavam muito mal acostumadas. Não faziam nada além de comer, beber, brincar, dormir... Uma vida que qualquer pessoa pediria a Ele. Mas foram logo mexer na macieira. Tanto coisa para mexer e logo na macieira? Tinha um ciúme danado daquela árvore. Adorava demais aquelas frutinhas saborosas. Mas o que acontece quando dizemos às crianças para não mexerem em algo? Pois é: mexem. Deveria ter usado a psicologia reversa, pensou; mas nem existia a psicologia ainda...  Então percebeu que era hora dos filhos resolverem a vida: mandou os dois embora, não sem antes prometer que sempre daria uma olhadinha.

Pois bem, estava Ele pronto para o seu descanso semanal, quando Lhe é solicitada uma audiência especial. Ele não acreditou. E só não rogou praga, porque não ia contra o próprio negócio. Achou melhor atender.

Um grupo de santos adentrou sem a menor cerimônia. Estavam todos inquietos e preocupados. Uma santinha muito jovem se aproximou e disse:

- Louvado seja nosso Senhor. Era muito educada a moça.

- Amém, respondeu Ele com um sorriso maroto pela graça da coisa. – O que querem comigo? - Não sabem que o sábado vai começar?

Eles todos se entreolharam e não puderam conter um certo riso. Afinal, desde o final do século XX e  o início do XXI, essa história de horário e dias rígidos de trabalho estava fora de moda. Era o chefe. Podia gozar de férias quando quisesse. Se estava no local de trabalho, e havia necessidade de soluções importantes, que trabalhasse, ora. A jovenzinha, apesar da pouca experiência, tomou a palavra:

- Senhor, viemos aqui, pois precisamos tratar de um assunto muito sério.

- E qual seria esse assunto, santa... Santa... Santa senhora, disse Ele ao se ver não reconhecendo aquela colaboradora.

- Santa Pamela Jennifer, Senhor.

- Claro, claro! Santa Pamela! Protetora das...

- Conexões caídas, completou ela.

- Mas que diab... Quer dizer, que significa isso?

Pamela Jennifer Siveira da Silva fora uma jovem brasileira muito pobre. Desde criança, interessou-se pela ciência digital. Desenvolveu em sua comunidade, a favela das balas perdidas, um programa de inserção social na área da informática: conseguiu computadores velhos, muito lentos, doados pela alta sociedade (a classe média há muito fora extinta), e os transformou em máquinas operacionais, levando a cultura da internet a todos na comunidade. Foi morta por um usuário (de drogas, não de computador), apaixonado por ela, apenas por tê-lo recusado na rede mundial de amizade. Uma morte horrível: enquanto a matava lentamente, por meio da fome e da abstinência do PC, leu para ela todos os livros do Paulo Coelho.

- Santa senhora...

- Pamela! Tinha orgulho de sua origem.

- Isso, isso (impaciente)! – Quando foi canonizada?

- Em 2140, Senhor. Durante a campanha de renovação das santidades. Muitas coisas modernas sem proteção.

- E por que não fui informado disso?

- Foi num sábado.

- Ah... Então, senhora, qual é o problema?

- O problema, Senhor, é a corrente?

- Hein?

- A cor-ren-te, disse ela pausadamente em alto e bom som, abrindo os braços e fazendo cara de “ai meu deus”.

- Quer explicar!

- Essas mensagens via internet que as pessoas mandam, pedindo graças e as recebendo caso enviem para outras tantas. Isso se espalha tal qual uma praga. Não tão boa como as que o Senhor produz, é claro!

- Puxa-saco... Falou baixinho para Si. - Sei, sei, um golpe de publicidade genial, não? – Fez crescer muito a religiosidade dos meus filhos.

- Fez também crescer outras coisas, Senhor.

- O quê? Perguntou Ele.

- Divórcio, crime, seqüestro, violência, espionagem e até mesmo a venda de livros do Paulo Coelho.

- Oh, meu Deus!

- Exibido, pensou ela.

- Mas como isso foi acontecer?

- Simples, disse ela com a autoridade da protetora das conexões caídas, as pessoas pedem ajuda e acabam convencendo outras de que os livros do Paulo...

- Não, não, interrompeu Ele, não me refiro a isso. Refiro-me a tudo.

- Mais simples ainda. Um pequeno exemplo: João é casado com Maria e gosta da Cláudia; esta, por sua, vez gosta da Maria também. Sérgio, marido de Cláudia, é gay e apaixonado por João.

- Simples? Isso é muito complicado. Pelo relatório apresentado, os pedidos foram atendidos. E João matou Maria para ficar com a Cláudia, pois Maria soube de tudo e raspou-lhe até o último centavo. Cláudia, desesperada pela morte do amor (Maria), matou-se, e Sérgio matou João que o rejeitou.

- Foi só um mal entendido.

- Mal entendido??? Isso é uma catástrofe. Imagino o tamanho dessa confusão. Vocês não podem atender a todos os pedidos. Precisam avaliar as conseqüências.

- Mas isso não é possível, pois as correntes se multiplicam como pães (ela gostava de se referir aos milagres da casa), disse a santinha esperando uma solução.

- Pois é! - A solução é uma só: acabar com a informática.

Foi uma grita geral. Os santos haviam ganhado fama e reconhecimento justamente por utilizarem a santa mala-direta. Tinham muitos devotos e não queriam voltar ao método antigo. Além disso, seria levar a humanidade 650 anos ao reverso.

- Senhor, nós temos outra solução.

- Qual?

- Não dá prá fazer tudo de novo?

- Fazer o quê, mulher?

- O mundo.

- Hein!?

- É, se acabar com a informática, a humanidade voltará à idade da pedra. Não seria melhor refazer tudo?

- Pensando bem...

- Será melhor; não é, gente?

TODOS: É!

ELE: Pois que assim seja.

ELA: Mas queremos mais um pedido.

ELE: Qual?

ELA: Dá pra fazer já moderno?

ELE: Assim, direto, sem evolução?

TODOS: É!

ELA: Será melhor. Todos já crescidos, familiarizados com as ferramentas modernas de comunicação etc...

ELE: Será?

TODOS: É!

ELE: Pois bem. Que assim seja.

E tirou da gaveta seu computador pessoal.

ELA: XP ou VISTA?

ELE: MAC!

ELA: MAC? Por quê?

ELE: Tem maçã!

TODOS: Ah...

ELE: Preparem-se, então, meus santos e santas, preparem-se para o que está escrito no livro sagrado.

Todos se entreolharam com cara de desconhecimento geral.

ELE: A Bíblia, gente!

Mais caras de espanto. Alguém perguntou: É do Paulo Coelho?

Ele, então, já cansado, apertou o botãozinho vermelho: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 trombetas soaram; 4 cavaleiros desceram à terra e a devastaram por completo. Era o dia 6 do 6 de 2666. 6 horas e 6 minutos. E não é que aquele anjo caído tinha razão, disse ele para Si.

ELE: Pronto, gente!

ELA: Vai refazer agora.

ELE: Agora, não.

ELA: Por quê?

ELE: É sábado!

TODOS: Ah... mém

Saíram e O deixaram só. Iniciou seu descanso e começou a repensar o mundo. Domingo seria um dia de muito trabalho. Mas uma coisa já era certa: no novo mundo só haveria macieiras e todo dia seria sábado. Sem correntes... De nenhum tipo.

 

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Published on e-Stories.org on 01/24/2008.

 
 

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